Stoa 60 / A crise de identidade do Design
O curioso caso dos designers mexedores de alavancas
Alguns dias atrás postei no Threads que achava engraçado quando meus novos seguidores descobriam que minha visão de mundo está muito mais alinhada com o comunismo do que a fantasia liberal que muitos gostam de acreditar. E que também achava estranho existir designer de direita, já que em teoria o design não deveria ser instrumento para enriquecer conta bancária de bilionário.
O post até o momento teve mais de 700 curtidas e muitos comentários. Alguns apoiando minha opinião, outros querendo saber mais sobre o assunto e uma parcela pequena de indivíduos que mantém não somente os pés, mas também as mãos no chão.
Meu objetivo na edição de hoje não é discutir se deveria existir designer de direita ou não, então sossega seus dedos nervosos aí. Quero discutir sobre como a visão que muitos designers tem sobre o Design hoje faz parte de uma crise identitária.
Origens
Alguns teóricos dizem que o design tem suas raízes na revolução industrial há 200 anos. Desde então, o design assumiu seu papel como contribuidor para o desenvolvimento em massa de inúmeros tipos de produtos. Alimentando o consumo e colaborando com esteriótipos de “sucesso” e objetos de “desejo”.
No século 19, o design fazia parte de uma relação designer-produtor-consumidor, na qual os designers serviam os produtores e esses, por sua vez, ditavam o que seria produzido em massa para ser comercializado para uma classe consumidora em expansão. 1
Avançando para o século XX, logo após a Segunda Guerra Mundial e início da Guerra Fria, o design e seus princípios modernistas ganham um papel central na reconstrução e crescimento econômico dos países afetados pela guerra. Aqui a forma segue a função e o “Bom Design” se torna acessível e não mais artigo de luxo das elites. 2
Saltando para o início dos anos 90, o Design passou por um fenômeno sociocultural em que o conceito “Design” experimentou uma explosão na mídia. Isso o levou a perder, segundo Gui Bonsiepe em seu artigo Design e Crise, o seu significado original (provavelmente o “bom design” pós guerra). O Design, na opinião pública, foi reduzido aos aspectos estético-formais e associado ao efêmero, ao caro, ao pouco prático e até ao supérfluo.3
A crise de identidade se acentua quando o design entra no mundo corporativo e as empresas passam a declarar com convicção que design é valor agregado. É o famoso “carro com design inovador” ou “celular com design moderno”, quando na verdade, nas palavras de Bonsiepe, não se pode agregar design a nada pois o design é intrínseco em cada artefato.
Com o Design em alta e rendendo super salários, especialmente no desenvolvimento de produtos digitais no atual capitalismo das nuvens4, não é de se espantar que pessoas como o amigo acima realmente pensem que o único papel do design é gerar desejo, incentivar o consumo exagerado e ser apenas uma ferramenta de marketing.
E é evidente que o capitalismo tem um papel central nesse tipo de visão. O consumo de produtos com o rótulo de “design" aproxima-se daquelas pessoas capazes de arcar com esses altos custos e afasta-se das pessoas comuns que jamais terão contato com esses artefatos ou que acabarão se rendendo a financeirização dos seus objetos de desejo.
Em um país em que 1% da população mais rica tem rendimento médio 30,5 vezes superior à metade da população mais pobre, não me parece justo que o papel do Design seja contribuir com o aumento dessa desigualdade.
Futuro
Esse trecho do artigo “design’s evolving role” sintetiza bem como nosso papel no mundo não tem sido muito…legal.
O século XXI evidenciou as limitações do modelo de mercado tradicional baseado no consumo, especialmente suas potenciais consequências negativas nos âmbitos social, cultural e ambiental. Os designers desempenham um papel crucial nesse modelo de mercado, sendo cúmplices de todas as suas deficiências. Todas as micropartículas de plástico nos oceanos carregam a marca dos designers. Os designers criam os estereótipos culturais que impulsionam as tendências de mercado. Eles estão envolvidos na seleção de materiais e na produção, o que acarreta consideráveis implicações sociais, econômicas e ambientais.
É necessário sair desse conformismo em que o design se colocou e se tornar embaixador do desenvolvimento de produtos e serviços que são economicamente viáveis, possuem equidade social, se preocupam com sustentabilidade ambiental e diversidade cultural.
Me entristece quando vejo alguns profissionais acreditando nas ladainhas liberalóides de que seu papel como designer é mexer nas alavancas do negócio. Que é trazer retorno para a empresa em forma de lucro no fim do trimestre disfarçado de preocupação com a experiência do usuário.
Como diz Mike Monteiro: aumentar lucro de empresa não é solucionar problemas, é fetiche.
Nosso papel vai muito além disso. E mesmo que seja difícil ter qualquer tipo de impacto contrário do que se espera na sociedade e economia atual, não podemos deixar de tentar.
O que você pensa a respeito?
Obrigado.
Onboarding ainda faz sentido em 2026?
Não perca esse papo com a Mariana Santana e Kakau Fonseca (Design Manager Nubank) sobre o que deve acontecer nas áreas de produto e onboarding em 2026. Será as 19h no dia 19 de Novembro. (ads)
https://www.theicod.org/en/professional-design/what-is-design/a-history
https://human.libretexts.org/Bookshelves/Art/American_Encounters%3A_Art_History_and_Cultural_Identity_(Miller_Berlo_Wolf_and_Roberts)/04%3A_Late_Colonial_Encounters-_The_New_World_Africa_Asia_and_Europe_1735-1797/17%3A_Cold_War_and_the_Age_of_the_Atom-_Consensus_and_Anxiety_1945-1960/17.04%3A_Post-war_Design_and_the_Domestication_of_Modernism#:~:text=The%20good%20design%20movement%20of,appeal%20of%20stark%20%22International%20Style%22
http://www.guibonsiepe.com/wp-content/uploads/2019/04/2012_03_Design-e-Crise_AGITPROP.pdf
“Capitalismo em nuvem”, ou mais especificamente “tecnofeudalismo”, é um termo usado para descrever um novo sistema econômico onde grandes empresas de tecnologia controlam plataformas e dados online, atuando como “senhores da nuvem” que coletam “aluguel da nuvem” em vez dos lucros capitalistas tradicionais.






